Este
artigo busca o sentido daquilo que entendemos por projeto de vida, segundo cada
época histórica e de onde surge os valores que aos poucos são incorporados nos
indivíduos. A relação entre os valores particulares e os coletivos, que em
dadas circunstâncias políticas e econômicas oferecidas pelo mercado, fazem
brotar nos espaços de fora do universo do trabalho e da política, iniciativas
que são incorporadas pelas empresas e instituições educacionais.
Joaquim Luiz Nogueira
A
conquista do espaço doméstico e a separação em lares burgueses e populares na
primeira metade do século XX na França mostra as transformações na esfera da
vida privada das pessoas. “O século XX é o século da conquista do espaço (,..)
o espaço doméstico necessário para a
plena realização da vida privada” (PROST in DUBY, 2010 p.62).
Nesta
primeira metade do século XX, os pais e os filhos viviam todos os atos da vida
cotidiana as claras, ou seja, era impossível esconder algo da família, não
havia muitas possibilidades para o isolamento dentro de uma residência desta
época ”Da mesma forma, nunca se dormia sozinho: sempre várias pessoas dormiam
no mesmo aposento, e amiúde na mesma cama” (PROST in DUBY, 2010 p.72).
Os
objetos das pessoas tidos como privados, eram raros, sendo a maioria deles de
valor simbólico, recebidos como presentes dos pais: “uma faca, um cachimbo, um
rosário, um relógio, uma joia, uma bolsinha de toalete ou de costura” (PROST in
DUBY, 2010 p.73). Quanto aos mistérios das pessoas, Prost, nos informa que
(...) a
vida privada se refugiava nos segredos, coisas silenciadas, inclusive aos
filhos. Segredos pessoais: sonhos, desejos, temores, saudades, pensamentos
efêmeros ou constantes, mas geralmente informulados. Estes eram confidenciados
ao médico, ao tabelião e ao padre (PROST in DUBY, 2010 p.73).
Aos
poucos, a vida privada das pessoas começa a ficar mais ampla, assim, que surgem
as profissões, momento em que se divide em três partes: vida profissional ou
pública, a vida familiar e a vida pessoal. O espaço doméstico se transforma
para se configurar com novos contextos e temos mudanças nas figuras de poder:
“a vida privada se viu praticamente presa ao controle da coletividade” (PROST
in DUBY, 2010 p.77).
As
residências ganham o muro, espécie de privilégio de algumas famílias para o
controle rigoroso “o marido era o chefe da família; a mulher casada precisava
ter sua autorização por escrito para abrir uma conta no banco ou para administrar
seus próprios bens” (PROST in DUBY, 2010 p.77). Neste contexto, o indivíduo
valia pela família e o poder dos pais sobre os filhos eram inquestionáveis:
(...) os
filhos não tinham qualquer direito a uma vida privada. O tempo livre deles não
lhes pertencia: cabia aos pais, que os encarregavam de mil tarefas. Eles
vigiavam minuciosamente as relações de seus filhos e mostravam uma grande
reticência quanto as amizades extrafamiliares (PROST in DUBY, 2010 p.79).
‘ Nas
famílias burguesas, essas práticas educacionais segundo Prost, davam aos pais o
poder de decidir sobre o futuro dos filhos. Portanto, entre as famílias
populares os filhos passam a escolher o ofício e os pais os colocavam nas
instituições como aprendizes. Antes,
esse aprendizado se dava dentro da família, sendo esta, a célula base da
sociedade, regida por normas. Esses valores quase desaparecem após a
transferência do trabalho produtivo da família ser deslocado para fora do
âmbito familiar.
Nesta
fase, os pais passam a ser menos autoritários e não impõem aos filhos o controle
rigoroso de antes, quando a necessidade de produzir em família fazia as leis,
as tarefas e as normas. E nesta liberalização, as famílias transferem para a
escola o aprendizado da vida em sociedade. De acordo com Prost, a escola recebe
a incumbência de ensinar os filhos a respeitar as obrigações do tempo e do
espaço.
Neste
momento, os filhos passam a formar suas
próprias relações como grupos de amigos e começam a surgir outros centros de
vida privada para concorrer com a família, por exemplo, os internatos e os
grupos de escoteiros. Tais necessidades sociais, derivam do universo de
trabalho dos pais.
Segundo
Prost, após a Segunda Guerra Mundial, os pais reconhecem que cabe aos filhos
escolherem o futuro deles e a família, deixa de ser uma instituição para se
tornar um simples ponto de encontro de vidas privadas. Temos então um contrate,
de um lado se encontra os valores ligados a profissão, a fortuna e as
qualidades morais dos pais e do outro, as inclinações estéticas e psicológicas
que influenciam nas decisões.
Para
Prost, este é o momento que o casamento também deixa de ser uma instituição para
ser uma formalidade e os jovens ganham independência dentro da família e podem
sair de casa sem o casamento ou até morar com uma companheira sem casar. “Então
se multiplicam os casais de jovem não casados, numa relação de coabitação
juvenil” (PROST in DUBY, 2010 p.91).
O
casal não é mais a norma exclusiva para criar filhos, sendo assim, transfere-se
o espaço domestico com a socialização do trabalho, que por sua vez reduzem as
tarefas ou obrigações cotidianas. O individuo passa a frente da família, e esta,
agora se torna apenas uma reunião de indivíduos, cada um com sua vida
particular. Prost chama de “individuo – rei” e começa o culto do corpo.
No
início, temos o corpo para as
necessidades do trabalho: servo, robusto e fiel a labuta diária. O emprego
exigia força física, vigor e resistência. Já na classe da burguesia, a vida
estética e de representação ganha espaço na sociedade. A relação entre o físico
e as roupas ganham mercado, pois as mulheres tinham que manter-se atraentes aos
seus maridos.
A
sociedade de consumo arrasta as pessoas para as práticas físicas e vestuários
esportivos. A cultura física dos trajes de banho e das quadras de tênis, a
dança e a ginastica retratam períodos de prosperidade dos centros sociais e
clubes urbanos.
Os
esportes enfatizam o esforço, o jogo e o prazer do corpo, assim como, o cuidado
do corpo. Este prazer se une a higiene do corpo, pois, ser esportista, passa a
ser uma forma de sintonia com seu tempo. Os hábitos modificam a relação do
individuo consigo mesmo e com os outros, surge a preocupação com a aparência, o
bem-estar e a autorrealização pessoal – “sentir -se bem na própria pele” (PROST
in DUBY, 2010 p.102).
Período
em que as pessoas curtem as músicas e dançam sozinhas, eventualmente sem
parceiro (Discotecas) A moda ganha as minissaias, bermudas e as camisas
abertas. “ a evolução da dança traduz essa
bem essa novidade” (PROST in DUBY, 2010 p.103). O corpo se tornou lugar da identidade pessoal,
sentir vergonha do corpo ou aceitar pensamentos, sentimentos, sonhos e
nostalgias como elementos impostos de fora do indivíduo. Criam -se máscaras e
personagens que vão além das ideias e convicções. De acordo com Prost, a vida social não é mais
constituída pelo trabalho, negócios, política ou religião. Ela é formada dos
valores das férias, do corpo livre e realizado.
As
normas da vida social ditam a aparência jovem e a personalidade se confunde com
o corpo. Necessidade de continuar a ser jovem e não adoecer. A expectativa de
vida aumenta e o viver torna-se um direito de todos. O hospital torna-se
segundo Prost, o templo da medicina – único lugar que é realmente possível
cuidar dos doentes de maneira científica. “Patenteia o desejo de viver
situações intensas e a conversa de um médico com seu paciente é uma realidade e
uma ideologia” (PROST in DUBY, 2010 p.110).
Agora,
as pessoas nascem e morrem num hospital, isto é, uma existência ligada à vida e
a identidade, pois, a retirada do âmbito familiar e do quadro doméstico,
transfere-se para o cenário asséptico e funcional, tornando se o anônimo do
hospital.
De
forma muito diferente, o bairro onde o individuo vive, ele se aufere em
proveito da vizinhança de que quem ele recebe, sorrisos, saudações,
cumprimentos e troca de palavras. É a sensação de existir, ser conhecido,
reconhecido, apreciado e estimado e em troca, apenas tem de respeitar as regras
do bairro.
Na
urbanização, segundo Prost, a semelhanças gera o anonimato e a extrema pobreza
das relações sociais, pois as pessoas passam a fazer o que bem se entende. De
acordo com pesquisa na França de 1975, afirma Prost, que para 73% dos jovens, a
primeira qualidade de um trabalho era a de estar adaptado a seus gostos
pessoais.
O
trabalho para tais jovens significava uma expectativa da vontade de realização
pessoal por meio do emprego. Prost nos fala que se tratava de jovens pouco
qualificados, que contestavam por meio do comportamento, o caráter funcional e
formal da organização da empresa. Para eles não existiam relações de trabalho,
apenas relações.
Os
interesses particulares eram exigências desejadas para estarem dentro das
tarefas a serem realizadas no emprego “Eles reivindicavam direitos da vida
privada no interior do trabalho. Havia uma recusa das condições de trabalho
impostas pela introdução da informática” (PROST in DUBY, 2010 p.130).
Na
luta entre interesses particulares no trabalho e as tendências do mercado de
consumo, faz entrar em cena “Os novos métodos de organização que tentam
devolver a autonomia a coletivos de trabalho (...) e incentivar a solidariedade
de grupo ((PROST in DUBY, 2010 p.132).
As
empresas são questionadas frente as demandas de mercado, que em nome da
qualidade e de falta de dinamismo, segundo Prost, encontra se paralisadas pelo
formalismo. E nesta fase, deve se incluir valores da vida privada dos
indivíduos para quebrar as hierarquias que ainda comandavam após a Segunda
Guerra Mundial nas organizações.
Para
a nova demanda se fala em “papel social” e num estilo “menos rígido” ou menos
formal, dando maior margem de autonomia aos participantes do processo de
trabalho, assim, a organização teria mais eficácia. O cenário ganha a
“liderança democrática” como vocabulário da empresa, seguindo a frase: “o chefe
manda, o líder mobiliza colaboradores” (PROST in DUBY, 2010 p.132).
Em
nome da eficácia, as “relações interpessoais” passam para a pauta do cotidiano
das empresas, cuja ideia era de influenciar com a inclusão de novas relações de
trabalho, trazidas do cotidiano dos trabalhadores. Esta nova metodologia atinge
as grandes empresas e o setor de serviços, uma espécie de “reciclagem” dos
funcionários ou formação de pessoal.
Esta
evolução das práticas e das mentalidades com origem no cotidiano, modifica o
estilo de autoridade “o chefe aperta a mão dos operários (...) é preciso ser
gentil com o operário” (PROST in DUBY, 2010 p.133).Esta transformação vem com
os acontecimento da França de 1968, quando a massa se apossa do direito de
reivindicar a palavra “os estudantes dão exemplo, contestando a autoridade
pedagógica dos professores” (PROST in DUBY, 2010 p.134).
Prost
explica que o saber no qual se funda a autoridade do professor não basta mais
para protegê-lo, ele passa a fazer parte de uma ordem abstrata, impessoal, sem
nenhuma relação com os interesses dos indivíduos, que se transformaram em uma
necessidade do coletivo. Os estudantes passam a falar na primeira pessoa e a
“tomar partido (...) e dizer o que pensa (...) rasgam os papéis sociais” (PROST
in DUBY, 2010 p.134).
As
ideias trazidas pelo ano de 1968, influenciadas pela onda do pensamento
socialista, que abordava a liberdade no sentido libertário da frase “é proibido
proibir” e segundo Prost, todos tomam a palavra e esperam ser ouvidos em um
desejo de reconstrução das relações públicas do trabalho, ou seja, incluindo
normas de interesse particular, estabelecida entre indivíduos.
Nesta
fase, as organizações empresariais começam a trabalhar com os valores humanos,
tais como generosidade, amizade, solidariedade. “não se diz mais Senhor, diz se
você” (PROST in DUBY, 2010 p.134). As pessoas passaram a descobrir uma as
outras e se conhecerem, numa tentativa de diminuir o anonimato dos indivíduos.
Surge
o termo “autogestão” nas organizações pós 1968, os indivíduos se envolvem mais
na empresa e ao incluir valores cotidianos, contrastam-se com os objetivos da
empresa. Para Prost, a liberdade individual e a vontade de não se alienar
incorpora no universo do trabalho e da política, que por sua vez, obedece a
pressões de mercado e não do próprio do indivíduo.
Nesta
fase, de acordo com Prost, o que é posto em questão é o conjunto de “papéis
sociais” , já que a vida pública anterior atribuía ao indivíduo uma posição e
uma série de funções que comandavam os papéis a serem desempenhados.
Anteriormente, os comportamentos das pessoas eram mais previsíveis pois os
contatos e as relações sociais restringiam a espontaneidade das pessoas.
Como
a evolução política das empresas e do mercado apagam as diferenças de
posição e hierarquia entre as pessoas, a
vida coletiva se mostra para revelar o contato iguais das pessoas, todos sendo
aceitos em suas particularidades. É a
decadência dos valores do lar e da família para os interesses coletivos das
massas que diluem os papéis sociais das funções públicas anteriores.
O
novo estado de espírito inaugura o que Prost chamou de “indústria dos
encontros”. Agora o sorriso e a desconcentração se convertem em normas. O
indivíduo deve se aceitar, ser simpático e participativo, pois o “sério” da
vida social do passado foi desqualificado como algo medíocre e o estilo
descontraído passa a ser incentivado nos meios de comunicação de massa para
utilização dos indivíduos.
O
início destes novos valores começou de acordo com Prost, fora do universo do
trabalho e da política, foi no espaço privilegiado das férias, dos jogos
coletivos e dos clubes sociais. Trata-se do contraste do mundo do trabalho que
passaram a formar os novos estilos das relações sociais, as formas de
acolhimentos das colônias de férias com abolições de barreiras, hierarquias e
posições sociais.
Pregam
relações humanas mais verdadeiras e promovem encontros descontraídos que
facilitam contatos e afinidades entre as pessoas. Os novos líderes são de
perfil animador e permitem a participação de todos, incorporam as qualidades do
comediante moderno segundo Prost, capaz de zombar de si mesmo, assim, consegue
minar a consistência e a seriedade dos papéis públicos.
A
moda e as roupas ajudaram neste processo de desqualificações dos papéis
públicos, os vestuários das décadas pós 1968 permitiram uma primeira
qualificação social dos indivíduos, isto é, códigos sociais novos que regiam as
várias circunstâncias da vida pública. Eram a moda da nova sociedade
descontraída com formas reguladoras mais brandas que poderiam garantir segundo
Prost, a coesão social.
Para
Prost, a ilusão de independência alimentava os indivíduos para um comportamento
mais conformista, sustentado por modo de vida consumista que passa a ideia que
a pessoa está bem informada. O indivíduo se julga independente para pensar por
si mesmo e ilustra suas ideias ao repetir a opinião mais recente que chegou até
ele pelos meios de comunicação de massa.
[i]
PROST, Antoine. Fronteiras
e
espaços
do privado. In DUBY, Georges
(org.)
História da vida Privada: da
Primeira Guerra aos nossos dias. São Paulo. Companhia das Letras
2010. P. 13 – 154.