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domingo, 29 de janeiro de 2017

O papel da fantasia no cotidiano

O papel da fantasia no cotidiano



As fantasias aliviam provisoriamente o peso e  a coesão do real.[1]

Joaquim Luiz Nogueira
Ao despertarmos do sono a cada manhã, os sentidos do corpo carregam de forma instantânea a consciência, e esta pulsa e nos aponta o que devemos fazer. Desse modo, damos prosseguimento ao movimento a que chamamos viver, isto é, produzimos a sequência da rotina diária com tendências semelhantes às dos dias anteriores.
Nesse sentido, podemos fazer um paralelo com a locomotiva (trem de passageiros) sobre trilhos, em que a viagem segue o mesmo trajeto todos os dias. As pessoas que embarcam nesse meio de transporte sabem que o percurso será o mesmo e, para suportá-lo, distraem-se com conversas, leituras, vagando em lembranças ou pensando em busca de soluções.
Quantas vezes ouvimos de outros ou de nós mesmos: “desculpe-me, estava tão distraído ou ocupado que nem vi o tempo passar”. Nesse momento, podemos afirmar que fomos tomados por um artifício que nos retirou de uma posição incômoda por alguns instantes. Que vácuo é esse?
Vamos a mais um exemplo diferente para tentar pressupor outra forma de alívio a uma dada angústia: o comportamento típico de uma galinha após botar seus ovos será sair correndo e cacarejando para anunciar o fato, segundo a fala popular, ou talvez, outra hipótese, isso seria apenas uma forma de aliviar o sofrimento pelo qual ela acabou de passar?
Para pensarmos em tais fugas da realidade, temos que supor certos mecanismos em nosso complexo animal além daqueles já conhecidos como a imitação e o disfarce – que também praticamos internamente em um sistema de troca –, que, em alguns casos, respondem de forma oposta ao que realmente aconteceu ao corpo.
É muito comum verificar esse mecanismo em algumas pessoas que conhecemos. Sabemos que uma pessoa está passando por momentos difíceis, mas quando perguntamos se ela está bem, ela nos responde com um sorriso: “Estou ótima, não se preocupe comigo”. E ficamos com uma interrogação sobre o que estaria planejando tal pessoa.
Retornamos à nossa hipótese para tentarmos pressupor que o vácuo em que mergulhamos quase automaticamente em certas situações, ou a troca de elementos que produzem sofrimento ou são angustiantes por respostas alegres e positivas, faz parte do que chamamos de fantasia, isto é, trata-se de uma maneira de fugir da realidade e mostrar uma versão que consiga afastar possíveis curiosos da veracidade.
Nesse sentido, vamos pressupor duas maneiras de usarmos a fantasia, uma delas será para suportar o peso de uma tarefa ou realidade árdua, como o exemplo da galinha, e a outra para inscrever na memória as sensações de vitória, que, mesmo sendo imaginárias, serão capazes de movimentar o corpo de forma positiva.
Ambas são bolhas idealizadas que podem ser comparadas a uma vontade pulsante, que se encarregam do desvio ou até do transporte dos sentidos para lugares desejados. Esses deslocamentos para espaços pretendidos provocam, por alguns instantes, uma retirada estratégica longe do mal-estar da realidade angustiante.
Pressupomos que esses campos fantasiosos se tornarão, em parte, responsáveis pela qualidade das ações reais e que, sem essas bolhas superficiais, nossos corpos terão dificuldade para se movimentar em seus cotidianos estafantes e recheados de problemas sem soluções.
Podemos dizer que esses mecanismos implicam elos do corpo com algo desejado, isto é, são pontes que nos ajudam a atravessar certos abismos. Não significa que eles deixam de existir, mas se tornam medíocres diante da promessa gerada pela conquista de algo, muito mais significativo e almejado pelo indivíduo.
Aqui temos duas possibilidades para agir – uma delas é tentar esclarecer a realidade da forma como ela se apresenta e a outra opção é substituir essa primeira incorporando sensações alternativas prazerosas, advindas de momentos de êxtase, pois, ao concentrarmo-nos mentalmente nelas, abrimos um leque de possibilidades que nos afastam do desespero.
Certos estados extasiantes irrigam os sentidos do corpo com sugestões que, de alguma maneira, minimizam a realidade e abrem janelas com visões maravilhosas e agradáveis, fazendo adormecerem possíveis reações negativas a partir de um deleite embriagador que emana de resultados ideais para uma dada situação.
Uma vez que tocamos em tais centros de perfeições, pequenas fagulhas irradiantes contagiam pontos sensíveis do corpo, colorindo angústias e fracassos com promessas e recompensas caso escolhamos agir de acordo com as regras impostas pelo objeto desejado.
Como exemplo de objetos orientadores de ações, podemos citar desde a vontade de ver um filho formado na universidade até o desejo de uma conquista amorosa ou a salvação da alma. Esses e outros pontos desejados se tornam indicadores de sentidos nas decisões cotidianas.
Desse modo, podemos falar que, quando nos deparamos com a visão desejada, mesmo que essa seja apenas uma fantasia, estamos protegidos por certa película em forma de espelho, cujo reflexo oferece uma gama de afinidades vinculadas a ideais e sonhos que nos tornam seres humanos capazes de desafiar a própria morte para mostrar que podemos encontrar saídas diante de obstáculos contra os quais outros já poderiam ter perdido a vontade de lutar.
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