O
papel da fantasia no cotidiano
Joaquim Luiz Nogueira
Ao
despertarmos do sono a cada manhã, os sentidos do corpo carregam de forma
instantânea a consciência, e esta pulsa e nos aponta o que devemos fazer. Desse
modo, damos prosseguimento ao movimento a que chamamos viver, isto é,
produzimos a sequência da rotina diária com tendências semelhantes às dos dias
anteriores.
Nesse
sentido, podemos fazer um paralelo com a locomotiva (trem de passageiros) sobre
trilhos, em que a viagem segue o mesmo trajeto todos os dias. As pessoas que
embarcam nesse meio de transporte sabem que o percurso será o mesmo e, para
suportá-lo, distraem-se com conversas, leituras, vagando em lembranças ou
pensando em busca de soluções.
Quantas
vezes ouvimos de outros ou de nós mesmos: “desculpe-me, estava tão distraído ou
ocupado que nem vi o tempo passar”. Nesse momento, podemos afirmar que fomos tomados
por um artifício que nos retirou de uma posição incômoda por alguns instantes.
Que vácuo é esse?
Vamos
a mais um exemplo diferente para tentar pressupor outra forma de alívio a uma
dada angústia: o comportamento típico de uma galinha após botar seus ovos será
sair correndo e cacarejando para anunciar o fato, segundo a fala popular, ou
talvez, outra hipótese, isso seria apenas uma forma de aliviar o sofrimento
pelo qual ela acabou de passar?
Para
pensarmos em tais fugas da realidade, temos que supor certos mecanismos em
nosso complexo animal além daqueles já conhecidos como a imitação e o disfarce
– que também praticamos internamente em um sistema de troca –, que, em alguns
casos, respondem de forma oposta ao que realmente aconteceu ao corpo.
É
muito comum verificar esse mecanismo em algumas pessoas que conhecemos. Sabemos
que uma pessoa está passando por momentos difíceis, mas quando perguntamos se
ela está bem, ela nos responde com um sorriso: “Estou ótima, não se preocupe
comigo”. E ficamos com uma interrogação sobre o que estaria planejando tal
pessoa.
Retornamos
à nossa hipótese para tentarmos pressupor que o vácuo em que mergulhamos quase
automaticamente em certas situações, ou a troca de elementos que produzem
sofrimento ou são angustiantes por respostas alegres e positivas, faz parte do
que chamamos de fantasia, isto é, trata-se de uma maneira de fugir da realidade
e mostrar uma versão que consiga afastar possíveis curiosos da veracidade.
Nesse
sentido, vamos pressupor duas maneiras de usarmos a fantasia, uma delas será
para suportar o peso de uma tarefa ou realidade árdua, como o exemplo da
galinha, e a outra para inscrever na memória as sensações de vitória, que,
mesmo sendo imaginárias, serão capazes de movimentar o corpo de forma positiva.
Ambas
são bolhas idealizadas que podem ser comparadas a uma vontade pulsante, que se
encarregam do desvio ou até do transporte dos sentidos para lugares desejados.
Esses deslocamentos para espaços pretendidos provocam, por alguns instantes,
uma retirada estratégica longe do mal-estar da realidade angustiante.
Pressupomos
que esses campos fantasiosos se tornarão, em parte, responsáveis pela qualidade
das ações reais e que, sem essas bolhas superficiais, nossos corpos terão
dificuldade para se movimentar em seus cotidianos estafantes e recheados de
problemas sem soluções.
Podemos
dizer que esses mecanismos implicam elos do corpo com algo desejado, isto é,
são pontes que nos ajudam a atravessar certos abismos. Não significa que eles
deixam de existir, mas se tornam medíocres diante da promessa gerada pela
conquista de algo, muito mais significativo e almejado pelo indivíduo.
Aqui
temos duas possibilidades para agir – uma delas é tentar esclarecer a realidade
da forma como ela se apresenta e a outra opção é substituir essa primeira
incorporando sensações alternativas prazerosas, advindas de momentos de êxtase,
pois, ao concentrarmo-nos mentalmente nelas, abrimos um leque de possibilidades
que nos afastam do desespero.
Certos
estados extasiantes irrigam os sentidos do corpo com sugestões que, de alguma
maneira, minimizam a realidade e abrem janelas com visões maravilhosas e
agradáveis, fazendo adormecerem possíveis reações negativas a partir de um
deleite embriagador que emana de resultados ideais para uma dada situação.
Uma
vez que tocamos em tais centros de perfeições, pequenas fagulhas irradiantes
contagiam pontos sensíveis do corpo, colorindo angústias e fracassos com
promessas e recompensas caso escolhamos agir de acordo com as regras impostas
pelo objeto desejado.
Como
exemplo de objetos orientadores de ações, podemos citar desde a vontade de ver
um filho formado na universidade até o desejo de uma conquista amorosa ou a
salvação da alma. Esses e outros pontos desejados se tornam indicadores de
sentidos nas decisões cotidianas.
Desse
modo, podemos falar que, quando nos deparamos com a visão desejada, mesmo que
essa seja apenas uma fantasia, estamos protegidos por certa película em forma
de espelho, cujo reflexo oferece uma gama de afinidades vinculadas a ideais e
sonhos que nos tornam seres humanos capazes de desafiar a própria morte para
mostrar que podemos encontrar saídas diante de obstáculos contra os quais
outros já poderiam ter perdido a vontade de lutar.
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